RETROSPECTIVA
POR ANA
DIAS CORDEIRO E JOÃO MANUEL ROCHA
A província angolana dos diamantes parou no
tempo. Para lá das denúncias de abusos de direitos humanos do activista Rafael
Marques, ninguém sabe muito bem o que por lá se passa.
Como uma ilha sem mar em redor, o Dundo, capital
da Lunda Norte, é, de tão isolado, um lugar esquecido no mapa. O que liga a
cidade ao resto da província e do país é frágil. E, nas aldeias, as únicas
ligações ao mundo deste lugar, de onde chegam frequentes relatos de violência
contra as populações, são os camiões que passam e a Rádio Nacional de Angola
que é possível sintonizar.
Na maior parte da Lunda Norte, mais de cem mil
quilómetros quadrados, não há electricidade e muito menos ligações telefónicas.
As escolas e os centros de saúde ruíram com o tempo ou a guerra, que durou
décadas e terminou em 2002. A vegetação e as árvores invadem, por entre buracos
e janelas, fachadas suspensas sobre pedras e ruínas de casas sem água, luz e condições
sanitárias mínimas. Com a falta de meios, nem sempre é possível reconstruir,
como aconteceu com muitas casas no Dundo.
Os professores, uma das poucas profissões à
margem da quase exclusiva actividade de extracção e comércio de diamantes,
eram, pelo menos até há poucos anos, pagos pelo Estado, mas viviam em casas sem
condições e só desejavam partir. Se precisam de tratamento médico, os
habitantes da província deslocam-se, quando podem, a essa única cidade onde
existe um hospital, também ele em parte destruído. Ou não procuram sequer
assistência.
A Lunda Norte, no Nordeste de Angola, é um "fim de mundo", onde se
desafiam os limites do que é lei ou natureza. Parou no tempo. O que é regra lá
fora é aqui excepção. Só quem lá vive sabe. Só quem, com dificuldades, lá
entra, pode imaginar o imenso fosso que separa a Lunda Norte do resto de
Angola, e mesmo da Lunda Sul, onde também há extracção de diamantes, mas a vida
se tornou diferente.
"O primeiro impacto foi de susto pelo que
encontrei: ouvia falar de uma terra de muita riqueza e dinheiro, encontrei uma
província muito pobre, esburacada, sem água, sem energia, com uma pobreza
antropológica gritante, com problemas tribais graves, muitas seitas, cruzamento
de interesses, invasão estrangeira por causa do garimpo dos diamantes",
descrevia, em Outubro de 2010, numa entrevista ao jornal espiritano Acção
Missionária, o então bispo do Dundo, José Manuel Imbamba, com quem o PÚBLICO
agora não conseguiu falar.
Perto mas longe da
Lunda Sul
O contraste entre as duas Lundas acentuou-se na
última década pela maior atenção dada pelo poder central ao Sul e pelo
desempenho da Catoca, uma exploração a céu aberto apresentada como o quarto
maior kimberlito - rocha que contém diamantes - do mundo.
Até 1978, a Lunda era uma única província. Nesse
ano, Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola, separou as zonas
diamantíferas, o Norte, do resto da província. Só depois, já nos anos 1990, a
Catoca, que hoje se assume como modelo a seguir pelas políticas de
responsabilidade social, ganhou importância.
Colada à Lunda Sul, a Lunda Norte é um mundo à
parte. Quem a visita, precisa de um visto especial. O viajante é quase
invariavelmente interrogado sobre os motivos da deslocação, antes de partir de
Luanda. "Ninguém entra nas Lundas sem restrições, tem de ter um documento
a dizer porquê", conta Shawn Blore, investigador sobre conflitos
relacionados com diamantes, que visitou várias vezes a região, ao serviço de
organizações não-governamentais internacionais.
De Luanda pode viajar-se para as Lundas por
estrada, via Malanje, onde já é fácil chegar, mas a partir de onde o caminho se
torna difícil, sinuoso, sujeito a sucessivos controlos policiais. As badaladas
obras em 2012, a tempo das eleições gerais, alteraram em pouco o movimento no
aeroporto do Dundo, que ainda só tem condições para receber pequenos voos.
A principal estrada que liga as duas Lundas, de
Dundo a Saurimo, a antiga Henrique Carvalho, no Sul, só em parte foi
reconstruída, no troço para Lucapa. Algumas vias secundárias são museus a céu
aberto do tempo das emboscadas da guerra entre o MPLA (Movimento Popular de
Libertação de Angola, no poder) e a UNITA (ex-movimento rebelde, hoje principal
partido da oposição). Camiões calcinados e outros vestígios lembram que a paz
só representa meia verdade neste vasto pedaço do território angolano onde se
travaram batalhas também pelo domínio de zonas de extracção.
Uma imensa pobreza
"A Lunda Norte parou no tempo.
Deliberadamente, deixaram a Lunda Norte parar no tempo porque é um assunto
muito tóxico", disse ao PÚBLICO Mathias de Alencastro, investigador e
estudante de doutoramento
As pessoas sobrevivem a "uma imensa
pobreza, um imenso sofrimento", explica Mathias de Alencastro, que, nos últimos
quatro anos, viajou várias vezes para as Lundas. Do que tem visto, diz que
"muito pouco ou nada mudou" no Norte, sobretudo quando olha para o
que se alterou nas outras províncias angolanas desde o fim da guerra, há 11
anos. "As Lundas são uma região que ninguém conhece, ninguém estuda e
ninguém quer saber muito."
As denúncias de violações de direitos humanos
adensam essa nuvem que paira sobre a terceira maior província de Angola, a
seguir ao Cuando Cubango e ao Moxico. Estimativas apontam para 850 mil
habitantes, mas há números muito contraditórios e nem isso é certo. Como não
será certo que os relatos de abusos que chegam ao exterior dêem um quadro
completo da realidade. No livro Diamantes de Sangue: Corrupção e Tortura
em Angola (Tinta da China, 2011), o activista angolano Rafael Marques
descreve um cenário de corrupção, abusos de poder, violência e morte, nos
municípios do vale do Cuango, sobre "pessoas isoladas do resto do país e
excluídas da paz militar que Angola vive desde 2002". E esquecidas, pelo
fraco interesse de dentro e de fora de Angola.
Lisa Rimli, da Human Rights Watch, que
investigou abusos sobre imigrantes nas zonas de fronteira, junto à República
Democrática do Congo, encontrou na Lunda Norte uma "cultura do medo"
que leva a que muitos abusos sejam silenciados. "Raramente as pessoas
chegam ao ponto de ir até ao fim nas denúncias", diz.
Num relatório intitulado Se voltarem, vamos
matar-vos: violência sexual e outros abusos cometidos contra imigrantes
congoleses durante as expulsões de Angola, a organização de defesa de direitos
humanos denuncia abusos, incluindo violência sexual, de elementos das forças de
segurança sobre detidas, sob ameaça de espancamento e morte ou com promessas de
alimentos.
Nas zonas que Lisa Rimli visitou, as forças de
segurança fazem "rusgas generalizadas" para impedir que os imigrantes
beneficiem do negócio dos diamantes - segunda maior fonte de riqueza de Angola,
depois do petróleo, com uma contribuição de 5% para o Produto Interno Bruto.
Quinto maior produtor mundial, apesar de isso representar apenas 8,1% do total
global, Angola extraiu em 2011 cerca de 8,3 milhões de quilates, segundo dados
da indústria diamantífera.
Nesta vasta província, a Endiama, empresa
diamantífera do Estado, dá as cartas quase todas. Actua como um Estado dentro
do Estado. Tem o exclusivo da prospecção, exploração e comercialização. E é ela
que decide a quem cede concessões para o garimpo legal, mantendo uma
participação nos negócios, sempre em alegada ligação a militares, pessoas
ligadas à Presidência em Luanda ou a parceiros estrangeiros da confiança do
núcleo mais restrito do poder.
Portugal também tem interesses na exploração
diamantífera da Lunda Norte, através da participação accionista de 49% da
empresa estatal SPE (Sociedade Portuguesa de Empreendimentos) na Sociedade
Mineira do Lucapa. Depois de, em 2011, o Governo ter revogado a licença de
exploração atribuída à SPE, o caso corre a via do litígio judicial. A Endiama
acusa a SPE de não "honrar" compromissos para viabilizar a exploração
mineira, o que a empresa portuguesa contesta.
"O problema mais grave é que as populações
não beneficiam [em] nada da riqueza dos diamantes. A responsabilidade social
das empresas diamantíferas é quase nula. Este é o grande escândalo das Lundas e
a grande preocupação da Igreja", dizia na entrevista de há quase três anos
José Manuel Imbamba, nomeado arcebispo de Saurimo em 2011.
A maior parte dos habitantes que se dedica ao
garimpo retira dele apenas o suficiente para sobreviver. As indemnizações recebidas
por terem sido afastados das suas zonas de cultivo mal dão para recomeçar a
vida noutro lugar. E parte deles regressa à zona de extracção de forma legal ou
ilegal. A fronteira entre as duas é muito ténue. E os garimpeiros ficam
sujeitos ao arbítrio das forças de segurança.
Um relatório confidencial de 2007 do Governo
norte-americano sobre a Lunda Norte, disponibilizado pela WikiLeaks, descreve
"a rede complexa e promíscua" que mistura "necessidades
económicas e ganância".
O poder, centrado nas concessões mineiras, é
assistido por empresas privadas de segurança detidas por generais. A polícia
nacional está pouco presente. As empresas de segurança privadas e a polícia
mineira existem para proteger os diamantes, não as pessoas. Representantes da
autoridade chegam a queixar-se de não poder entrar em zonas de concessão.
Heranças de guerra
Para as empresas de segurança trabalham alguns
ex-militares, pessoas que conviveram, no tempo da guerra, com os mercenários da
Executive Outcomes que vieram nos anos 1990 assistir em decisivas batalhas no
conflito entre o MPLA e a UNITA e se tornaram depois consultores para a criação
dessas empresas.
Na Lunda Norte, a violência banalizou-se tanto
quanto a morte. Não há memória de um tempo em que fosse dado algum valor à vida
humana. Os relatos de maior violência chegam da região do Cuango. A que não é
alheio o facto ser no Cafunfo, no vale do rio Cuango, que está a grande
concentração de pedras valiosas de aluvião - encontradas no rio - e também de
empresas de segurança e de postos de compra da Ascorp, que controla o essencial
da compra e venda.
É no Cafunfo que o rendimento do garimpo é maior
e é de lá que chega a maioria das denúncias do activista angolano Rafael
Marques. Mas não só. Também se ouvem histórias de garimpeiros que foram
afogados no rio, de outros a quem foi aberto o estômago por engolirem diamantes
ou a quem eram cortados os dedos das mãos.
As dinâmicas de violência não são de agora.
"Aquilo a que hoje chamamos de violações de direitos humanos são crimes
sistémicos instituídos há mais de 100 anos. O sadismo varia de uns para outros,
mas ouvi relatos muito violentos do tempo da Diamang", diz Mathias de
Alencastro.
"Não se resolve a questão dos direitos
humanos sem olhar a perspectiva histórica e de longa duração desse abuso de
violência, desse carácter privado da violência nas Lundas há mais de 100 anos.
É um trabalho importantíssimo mas este é um problema que vem de trás. São
dinâmicas completamente enraizadas a nível local", acrescenta.
À violência por omissão de um Estado que não
providencia cuidados básicos, junta-se a violência associada ao garimpo numa
dinâmica de provocar medo para melhor controlar, presente desde a era colonial.
Nesse tempo, dizem os nostálgicos, a violência era regrada e as pessoas sabiam
o que fazer. Agora, a violência chega, sem aviso, e pode acontecer a qualquer
momento.
"É um povo ostracizado", diz Mathias
de Alencastro do povo Lunda-Tchokwé. "O Estado colonial ou pós-colonial
não conheceu a província, nunca interagiu com a província. Os portugueses
também delegaram todos os poderes a uma empresa privada." Era a Diamang,
dissolvida em 1988 e substituída pela Endiama, que tinha sido criada em 1982. O
centro industrial da Diamang era a cidade do Dundo, "jóia da ciência colonial",
erguida como capital da Lunda.
A Diamang colonial tentava incluir a população
no sector dos diamantes para, com isso, limitar o tráfico. E criou quase um
Estado social paralelo, construindo estradas e zonas urbanas, escolas e
hospitais. A população passou a rever nela uma função do Estado. Mas o que
resta desse tempo é muito pouco. O hospital tem décadas e um novo, já
anunciado, ainda não funciona. Poucas escolas estão de pé, mas sem condições.
Neste fim de mundo, resta do passado um tribunal. Porém, as pessoas não
conhecem os seus direitos. Ao contrário de outras províncias, a Lunda Norte não
tinha, pelo menos até há pouco tempo, beneficiado de obras de reconstrução
nacional.
Várias formas de
violência
Hoje a violência assume diferentes formas. Da
corrupção à violência, passando pelos abusos sobre imigrantes denunciados pela Human Rights Watch, a recentes casos de tráfico de órgãos humanos. Em Junho,
milhares de pessoas saíram à rua no Cafunfo, em protesto contra o que
consideram ser a passividade das autoridades face ao assassínio de mulheres
para extracção de órgãos genitais destinados a rituais de feitiçaria, com ideia
de mais facilmente se encontrarem diamantes.
O Partido da Renovação Social, com implantação
nas Lundas, que nas eleições de 2012 elegeu três deputados e é a quarta força
no Parlamento nacional, denunciou, com nomes, datas e circunstâncias,
assassínios de 15 mulheres nos últimos três anos. E também perseguições a
garimpeiros, em zonas controladas pelas empresas de segurança TeleService e
Bicúar, em áreas concessionadas à Sociedade Mineira do Cuango. Além de
denunciar esses casos, o secretário-geral Benedito Daniel quantificou em 578 o
número de assassínios "selectivos" na zona do município do Cuango,
desde 2003.
Nos últimos anos, na Lunda Norte, os diamantes
entraram num ambiente de fim de reinado, explica Mathias de Alencastro. "Na viragem do ano 2000, o garimpo era das
coisas mais rentáveis que havia, porque o preço dos diamantes estava
alto." O preço entretanto baixou e o desemprego cresceu com a partida
de algumas empresas. "Há uma certa exaustão."
Os mais de mil quilómetros de distância que
separam o Dundo de Luanda, a dificuldade de acesso, a escassez de informação,
criaram e alimentaram mitologias associadas às Lundas. Malanje foi durante
décadas o limite do conhecido para quem vinha de fora e começava por ter
dificuldade em entender as línguas locais. São comuns histórias de quem teve
familiares que partiram para a região e nunca mais voltaram.
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